Aos menos adeptos da versão de reality show em que pessoas são postas em confinamento e vigiadas por câmeras, a ficção já tinha cuidado de apresentar um modelo de narrativa em que a figura romanceada do grande irmão tudo vê: a septuagenária obra 1984, de George Orwell, é uma ficção social e política com uma mensagem pujante aos dias atuais. O aspecto intelectual de questionar o comportamento humano é o desafio que percorre a existência da própria raça humana.
Um dos programas de maior audiência na televisão é fenômeno por mais de 20 anos nas telas brasileiras. O Big Brother surgiu na Holanda, em 1999. John de Mol, sócio da empresa Endemol, foi o criador do reality show que expõe o convívio de pessoas, em isolamento, com a vigilância de câmeras na totalidade do tempo.
Uma receita básica, já que a genialidade está na simplicidade. Afinal, não tem nada mais humano que a relação que estabelecemos uns com os outros. Por certo, não somos todos compatíveis em pensamentos, escolhas e opiniões. Administrar nossas humanidades, repletas de falhas, em especial diante da relação com os outros (agravada por serem estranhos ao nosso convívio), é a fórmula simples que alimenta o voyeurismo dos telespectadores.
Julgamento alheio
Nenhuma grande novidade, uma vez que desde que o mundo é mundo, as pessoas observam e julgam umas as outras. Seja por meio de imagens quase poéticas, de um vizinho mais curioso, de prontidão na janela para uma fofoca; ou mesmo os personagens da política que se tornam delatores daquilo que viram e ouviram, não raramente, também participaram. O grande irmão, seja quem o for, está sempre vigiando, mais que isso, disposto a opinar e julgar aquilo que tudo vê.
A sociedade de vigilância sustenta-se na informação, que mesmo exposta, quando manipulada, ou violada, ainda que a nossa corte suprema não reconheça o direito ao esquecimento, abarca campo fértil para proteção de dados. Vejam que na obra de Orwell, o mundo pós-revolucionário aboliu valores humanos, em um ministério da verdade criado para gerar mentiras institucionais (teria sido uma inspiração para fake news?) fazendo do esquecimento uma afronta a liberdades.
Bem contra o mal
A sociedade materialista que o livro narra é caracterizada pelos membros do partido, proles e escravos. O reality da TV também segmenta grupos e, em tese, não é ficção. As pessoas confinadas sustentam que são elas mesmas em um jogo. Desconfio que nem elas saibam quem são. As câmeras captam a integralidade do tempo dos participantes, mas o grande público vê imagens editadas. Nasce um enredo e, como toda boa história, alimenta-se da eterna dicotomia: bem/mal; errado/certo; pobre/rico; branco/negro; homens/mulheres.
Assim, após um período de vigilância, o último brother a permanecer na casa recebe um prêmio em dinheiro: o grande campeão. Quem ganha afinal? Há um estudo comportamental das pessoas escolhidas: elas são induzidas, passam fome, afastamento familiar, carência de convívio, etc. Estamos em meio a uma pandemia, quase todos surtamos em permanecer em casa por tanto tempo e não estávamos enfrentando desconhecidos. Este Big Brother poderia ser diferente, por que entendemos o que é estar em isolamento e sabemos que não somos, nem fomos nós mesmos.
(Vitor Hugo do Amaral Ferreira)
Foto: Divulgação/madeiratotal
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